Em uma das denúncias mais robustas do ciclo eleitoral de 2024 no Rio Grande do Norte, o Ministério Público Eleitoral (MPE), por meio do Gaeco — Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado —, apresentou um relatório técnico com 882 páginas contendo áudios, prints, transcrições de mensagens e arquivos de computadores públicos que, segundo o órgão, revelam o uso sistematizado da máquina pública municipal de Natal para fins eleitorais.
As informações, que constam na ação de investigação judicial eleitoral (AIJE) que tramita na 4ª Zona Eleitoral de Natal, foram reveladas em primeira mão pelo jornalista Daniel Menezes, do blog O Potiguar.
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No centro das denúncias estão os nomes de Paulinho Freire (Republicanos), Joana Guerra (Republicanos), Daniel Rendall, Irapoã Nóbrega e o ex-prefeito de Natal, Álvaro Dias. Todos são alvos do pedido de cassação de mandato e inelegibilidade, conforme consta na peça do MPE. As provas apresentadas foram periciadas tecnicamente, aceitas pela Justiça e validadas como relevantes para o mérito da ação.
De acordo com o Ministério Público, o que foi identificado não é um caso isolado ou pontual, mas sim uma estrutura organizada e multifacetada, com envolvimento de diversas secretarias municipais, terceirizadas e servidores públicos.
Entre os principais eixos da denúncia, estão:
- Coação e assédio político em CMEIs e escolas municipais;
- Uso de servidores e carros públicos em ações de campanha;
- Organização de comícios e caravanas com apoio logístico de secretarias;
- Criação de grupos de WhatsApp e agendas políticas dentro de pastas municipais;
- Manipulação de pesquisas e mapeamento de funcionários para ações eleitorais;
- Demissões motivadas por recusa em apoiar candidaturas;
- E, em larga escala, o uso da Prefeitura de Natal como base de apoio às candidaturas de Paulinho Freire, Joana Guerra e aliados, com conhecimento ou participação direta do ex-prefeito Álvaro Dias.
Fiscais de campanha eram servidores
Um dos núcleos mais contundentes da denúncia diz respeito ao uso de servidores públicos comissionados e terceirizados como fiscais de urna do Partido Republicano, legenda pela qual Paulinho Freire disputou o pleito. O cruzamento de dados feito pelo Gaeco identificou que dos 354 fiscais cadastrados oficialmente:
- 205 tinham vínculo comissionado com a Prefeitura de Natal;
- 63 eram contratados por empresas terceirizadas do município;
- Apenas 86 não tinham qualquer relação funcional com a gestão pública.
Segundo o Ministério Público, isso evidencia um desvio de finalidade e abuso de poder político, já que os fiscais foram alocados para atuar diretamente no dia da votação com viés de campanha.
Transporte de eleitores e reuniões bancadas com estrutura da Prefeitura
Em documentos encontrados nos computadores da Secretaria Municipal de Trabalho e Assistência Social (SEMTAS), constam listas de ônibus organizados para deslocamento de eleitores a eventos e comícios, com participação de nomes como Daniel Rendall e Irapoã Nóbrega.
Também foram identificados arquivos contendo a agenda de reuniões políticas das campanhas de Paulinho Freire e Joana Guerra, com coordenação atribuída a secretários municipais ainda em exercício e com envolvimento direto de integrantes do gabinete do então prefeito Álvaro Dias.
Ainda de acordo com a denúncia detalhada no blog O Potiguar, o MP teve acesso a grupos de WhatsApp e áudios que revelam a pressão de gestores de Centros Municipais de Educação Infantil (CMEIs) sobre estagiários e servidores. A ameaça era clara: se não apoiassem os candidatos indicados, poderiam ser demitidos.
“Minha sobrinha chegou aqui em casa horrorizada. As diretoras diziam que era para votar nos candidatos dessa gestora, senão ela ia perder o estágio. Foram várias colegas”, relatou uma testemunha, em mensagem incluída nos autos.
Há também reclamações formais de diretores de escolas da EJA (Educação de Jovens e Adultos), criticando a liberação sistemática de professores para eventos políticos durante o expediente escolar.
SEMSUR e a limpeza como estratégia de marketing
Mesmo após ter sido exonerado da chefia da Secretaria de Serviços Urbanos (SEMSUR), Irapoã Nóbrega seguia coordenando ações de limpeza urbana em pontos estratégicos, de acordo com o MP. As praças e avenidas onde haveria gravações de campanha ou comícios recebiam mutirões de limpeza com data marcada.
As mensagens citadas nos autos revelam que a pasta foi usada para moldar o ambiente em função de agendas políticas, inclusive fora do calendário oficial da Prefeitura.
Compra de votos e padronização de valores
Outro aspecto grave é o conteúdo de conversas em que coordenadores de bairro debatem valores a serem pagos a eleitores. As mensagens mencionam pagamentos de R$ 20 a R$ 30, orientações sobre roupa a ser usada no dia da eleição para comprovação de apoio e até logística de transporte para facilitar o translado de votantes.
“É melhor dizer que é 20 e vir 30, do que o contrário”, diz um dos envolvidos em áudio anexado pelo Gaeco.
ARSBAN: assédio, carro oficial e controle informal
O então diretor da Arsban, Victor Diógenes, é acusado de usar servidores e carros da autarquia para eventos de campanha, inclusive em horário de expediente. Uma das mensagens analisadas diz:
“Pedi só para ele não estacionar o carro perto do evento nem ir com a farda, né?”
Além disso, ele teria demitido servidores que não quiseram integrar o grupo de campanha “Amigos da Vitória 2024”, como foi o caso do servidor Raimundo Justino. O MP aponta que essas exonerações estariam vinculadas exclusivamente a motivações políticas.
Mesmo após sua exoneração formal, o Gaeco afirma que Victor continuava recebendo informações administrativas da ARSBAN e dando ordens aos funcionários. Posteriormente, foi nomeado novamente ao mesmo cargo.
Álvaro Dias aparece convocando e coordenando
O ex-prefeito de Natal aparece diretamente envolvido nas conversas de convocação para eventos políticos. Em grupos de WhatsApp analisados pelo MP, Álvaro mobiliza secretários e pede presença de adjuntos em reuniões e arrastões de campanha.
Para o Gaeco, isso demonstra que não havia separação entre o papel institucional e o uso político da máquina pública por parte da chefia do Executivo municipal.
A denúncia também inclui a tentativa de manipulação de uma pesquisa eleitoral da AtlasIntel. Um link foi enviado por um dos coordenadores da campanha ao grupo de servidores e colaboradores, solicitando que todos respondessem de forma combinada. O MP considerou essa ação como um indício de tentativa de influenciar artificialmente a percepção pública de intenção de voto.
Repercussão judicial
As provas reunidas pelo Gaeco foram formalmente aceitas pela Justiça Eleitoral da 4ª Zona, que considerou os elementos apresentados como relevantes e tecnicamente válidos para o andamento do processo.
A AIJE pede a cassação dos mandatos de Paulinho Freire, Joana Guerra, Daniel Rendall e Irapoã Nóbrega, bem como a declaração de inelegibilidade de todos os envolvidos, incluindo o ex-prefeito Álvaro Dias.
Os citados ainda não foram julgados e têm direito pleno à defesa. O processo segue sob sigilo parcial e ainda está em fase de instrução.