Mistério genético no RN: mutações inéditas afetam rins, visão e audição em famílias do interior

No Rio Grande do Norte, um mistério microscópico mobiliza cientistas: alterações genéticas que desencadeiam uma doença sorrateira, capaz de comprometer rins, audição e visão sem dar sinais evidentes.
Mistério genético no RN: mutações inéditas afetam rins, visão e audição em famílias do interior
Estudo teve início a partir de investigações clínicas na oftalmologia, que identificaram alterações visuais associadas à síndrome de Alport em famílias potiguares – Foto ilustrativa: Cícero Oliveira – Agecom/UFRN

No interior do Rio Grande do Norte, um enigma silencioso ganhou nome, sequência genética e atenção internacional. Cientistas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), em parceria com a Universidade Johns Hopkins (EUA), identificaram duas mutações genéticas inéditas em famílias dos municípios de São Miguel e Santo Antônio do Salto da Onça — alterações responsáveis por casos graves da síndrome de Alport, doença hereditária que compromete rins, audição e visão de forma progressiva e, muitas vezes, despercebida até o estágio crítico.

A pesquisa, publicada na revista científica BMC Genomics (acesso aqui), é resultado de um trabalho de mais de uma década iniciado no Instituto de Medicina Tropical (IMT/UFRN) pelo oftalmologista Carlos Alexandre Garcia e pela médica Raquel Uchoa, sob coordenação da professora Selma Jerônimo, diretora do IMT. O estudo é também parte da tese de doutorado de Washington Candeia, no Programa de Pós-Graduação em Bioquímica e Biologia Molecular da UFRN.

A doença de Alport afeta uma estrutura microscópica dos rins chamada membrana basal glomerular. Composta por colágeno tipo IV, essa estrutura funciona como um filtro ultrafino para o sangue. Quando há mutações nos genes responsáveis pela produção desse colágeno — os COL4A3, COL4A4 e COL4A5 — o filtro falha. O resultado? Perda gradual da função renal, além de danos auditivos e oculares.

Estudo encontra variantes inéditas ligadas a doenças que afetam rins, audição e visão
Síndrome de Alport é uma condição hereditária que compromete a função dos rins, da audição e da visão, muitas vezes de forma silenciosa e progressiva

A equipe do IMT identificou duas mutações genéticas inéditas: uma no gene COL4A3, que interrompe prematuramente a leitura do DNA (como um ponto final colocado no meio de uma frase), e outra no COL4A4, que bagunça a informação genética e compromete a formação correta da proteína. Ambas as mutações foram encontradas em famílias com histórico de casamentos consanguíneos, o que eleva a chance de herança dupla do gene defeituoso — quadro clínico mais severo da doença.

O método utilizado, chamado sequenciamento completo do exoma, permitiu mapear todas as instruções do corpo humano para produção de proteínas. A análise revelou que pessoas com duas cópias da mutação herdadas dos pais são as que desenvolvem a forma mais agressiva da síndrome. Mas o alerta acende também para portadores de apenas uma cópia: mesmo que assintomáticos por anos, esses indivíduos podem desenvolver manifestações mais leves ou tardias.

Essa descoberta é essencial para estratégias de diagnóstico precoce e prevenção em áreas onde o acesso à medicina especializada ainda é limitado. Segundo os pesquisadores, identificar quem carrega o gene defeituoso antes dos primeiros sintomas é a chave para evitar a progressão até a necessidade de hemodiálise ou transplante renal.

Em termos sociais, o impacto da pesquisa é ainda mais amplo. No Brasil, cerca de um terço dos casos de doença renal crônica não tem causa conhecida. Estudos como este não apenas iluminam causas genéticas, mas ajudam a colocar populações brasileiras nos grandes bancos globais de dados genômicos, historicamente concentrados em perfis europeus ou norte-americanos.

Além de abrir novas perspectivas para o diagnóstico da síndrome de Alport, o trabalho da equipe potiguar reforça a necessidade de políticas públicas para inclusão da testagem genética preventiva no SUS — especialmente em comunidades do semiárido e do interior, onde os riscos de herança genética são potencializados pelo isolamento histórico.

O acompanhamento das famílias continua. Os cientistas planejam expandir o mapeamento para outras regiões do estado com perfis genéticos semelhantes, a fim de detectar precocemente casos ocultos da síndrome. A esperança é clara: que o avanço da ciência chegue antes da falência dos órgãos.

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