Não é de hoje que o jornalismo trava uma batalha silenciosa contra os algoritmos. Mas agora, as redações brasileiras decidiram falar em voz alta — e no fórum certo. Às vésperas do julgamento de um processo que pode redefinir os limites entre informação e tecnologia no país, as principais entidades de jornalismo do Brasil se uniram para pedir ao Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) a ampliação da investigação sobre o Google.
O caso gira em torno de uma denúncia formal de prática anticoncorrencial. Segundo as entidades, o Google estaria se valendo de sua posição dominante no mercado de buscas para priorizar conteúdos próprios e reter tráfego, enfraquecendo a visibilidade e a sustentabilidade econômica dos veículos de comunicação.
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Assinam o pedido conjunto a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), Associação Nacional de Jornais (ANJ), Associação Nacional de Editores de Revistas (Aner), Associação de Jornalismo Digital (Ajor), Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e Repórteres Sem Fronteiras (RSF).
O recado é direto: as práticas do Google afetam diretamente a diversidade informativa no Brasil — e o Cade precisa aprofundar a apuração antes de encerrar o caso.
O argumento central: o algoritmo decide, o jornalismo perde
As entidades argumentam que, ao exibir resumos de notícias diretamente no topo dos resultados — e agora com a nova ferramenta AI Overviews —, o Google desestimula o clique para os sites originais e concentra a atenção dos usuários dentro da própria plataforma. A crítica não é nova, mas ganha força diante da ascensão da inteligência artificial generativa, que agora responde perguntas com base em conteúdos jornalísticos sem redirecionar o leitor nem remunerar os criadores.
“A forma como a IA produz respostas deixa evidente que há retenção do tráfego que poderia ir para os meios de comunicação”, alertou Bia Barbosa, coordenadora de incidência da RSF na América Latina.
Ela também questiona a transparência do Google em relação às métricas de impacto:
“É preciso que uma autoridade tenha acesso aos dados que estão nas mãos do Google para medir o impacto antes de se afirmar que não há práticas anticoncorrenciais no Brasil.”
O posicionamento da RSF é especialmente contundente por destacar o efeito sistêmico: não se trata apenas de números de acesso, mas de erosão do ecossistema jornalístico como um todo.
O Cade como palco decisivo
O processo que será julgado no dia 28 de maio analisa justamente se o Google, ao ranquear e estruturar os resultados de busca, favorece seus próprios serviços, como o Google News, Google Discover e agora o AI Overviews, em detrimento da concorrência editorial legítima.
Para Marcelo Rech, presidente da ANJ, o Brasil não pode ignorar os sinais globais:
“O Brasil sempre esteve à frente em discussões sobre práticas anticompetitivas. Não faria sentido, agora, simplesmente ignorar esse debate, quando se inicia a era da inteligência artificial.”
Ele faz referência direta à movimentação de outros países:
- Nos Estados Unidos, o DOJ (Departamento de Justiça dos Estados Unidos) pediu a venda de plataformas publicitárias da Alphabet por suposto monopólio.
- Na África do Sul, a autoridade de concorrência recomendou que o Google remunere veículos locais com até R$ 135 milhões anuais.
- Na União Europeia, já há exigências formais por transparência algorítmica e redistribuição justa da receita de anúncios.
O que as entidades querem
A carta enviada ao Cade solicita que o processo investigativo seja ampliado com base em três eixos:
- Maior transparência nos critérios de ranqueamento de conteúdos jornalísticos.
- Acesso a dados de tráfego e retenção vinculados a produtos como Google Discover e AI Overviews.
- Avaliação do impacto concorrencial da IA generativa no ecossistema da mídia — especialmente quanto à apropriação de conteúdo sem compensação.
Maia Fortes, coordenadora de incidência da Ajor, sintetiza o espírito da petição:
“O Cade tem a oportunidade de promover avanços na transparência das práticas de ranqueamento, coleta de dados e valorização econômica do conteúdo jornalístico.”
O pano de fundo: valor sem retorno
Para além dos aspectos técnicos, a crítica compartilhada pelas entidades tem natureza estrutural: o conteúdo jornalístico gera valor informacional, retém audiência e fundamenta o debate público — mas esse valor é capturado por plataformas que não investem na sua produção.
O Google argumenta que os usuários continuam acessando sites e que os resumos da IA são apenas complementares. Mas, para quem vive de jornalismo, a realidade é outra: queda de audiência, perda de relevância, sufocamento financeiro.
Não se trata de criminalizar a tecnologia — e nem o avanço da inteligência artificial. O que está em jogo é a redistribuição justa do valor que ela gera.
Se o Cade encerrar esse processo sem aprofundar a investigação, será mais do que uma decisão técnica. Será a legitimação de um modelo em que a manchete some antes de ser lida — e o jornalismo, sem ar, vira apenas insumo para robôs.
As entidades pedem um tempo extra. Não para adiar o inevitável. Mas para garantir que, quando o algoritmo for o editor-chefe do país, haja ao menos alguém fiscalizando a linha editorial.