Faith: The Unholy Trinity: jogo de terror 8-bit resgata o medo com poucos recursos
O terror eficaz vai além de sustos fáceis e violência gratuita. Ele combina atmosfera, narrativa e uma compreensão do que provoca medo, isolamento e perigo iminente. O jogo subestimado Faith: The Unholy Trinity demonstra exatamente como criar horror impactante com o mínimo de recursos.
Lançado em episódios entre 2017 e 2022, Faith: The Unholy Trinity é um jogo de survival horror com estilo visual de aventura clássica 8-bit. Ao longo de três capítulos, o jogo narra uma história sombria de possessão, rituais noturnos e a transformação de uma cidade inteira. O que torna Faith notável é que sua apresentação visual, inspirada no Atari 2600 e Apple II, é mais do que uma escolha estética. Faith reproduz a atmosfera, o tom e a era em que se baseia, utilizando gráficos pixelados, animação rotoscópica e modulação de voz para criar um dos jogos de terror mais marcantes dos últimos anos.
A trama leva os jogadores para a cidade de Sterling, em Connecticut, no ano de 1987. Um padre católico chamado John Ward dirige-se a uma casa abandonada durante a noite. Sozinho e armado apenas com um crucifixo, John busca completar o exorcismo da jovem Amy Martin, que resultou na morte dos pais dela e do padre Allred um ano antes. O que John descobre nas ruínas da casa de Amy o coloca em um caminho de sangue, demônios e a verdade distorcida no coração de Sterling.
Faith presta homenagem ao chamado "Satanic Panic" dos anos 1980, quando líderes religiosos, igrejas e pais temiam que a influência de Satanás estivesse se infiltrando na cultura de crianças e adolescentes. Desde programas de televisão até música, jogos de RPG de mesa e brinquedos eram acusados de corromper os jovens. Faith explora essa ideia, criando um cenário onde forças demoníacas reais emergem em uma pequena cidade americana.
Apesar de todas as acusações terem se mostrado infundadas, Faith mergulha nesse período bizarro da história americana. O que torna o jogo ainda mais perturbador é o uso de gravações de áudio reais do exorcismo de Anneliese Michel, uma adolescente alemã. Faith leva a sério seu material de origem, mantendo-se fiel a ele até o final aterrorizante.
Ao longo do jogo, os jogadores controlam John Ward ou outro padre, o Padre Garcia. A jogabilidade envolve conduzir os padres por vários locais em Sterling, buscando pistas e lutando contra inimigos. O crucifixo é a principal forma de defesa, usado para repelir inimigos e exorcizar objetos, liberando anotações para os jogadores coletarem. Essas anotações são cruciais para desvendar a história, pois John e Garcia estão tão perdidos quanto os jogadores sobre as atividades de culto que acontecem na cidade.
Para evitar que Faith se torne repetitivo, há lutas contra chefes ao longo dos capítulos. John e Garcia são pessoas comuns, e um único toque dos seres das trevas pode resultar em suas mortes. Faith exige reflexos rápidos durante essas lutas, onde os inimigos correm, se teleportam e cruzam a tela rapidamente. Felizmente, se os jogadores caírem, um simples recarregamento os coloca de volta à ação. Faith combina exploração, survival horror e reflexos rápidos para criar uma experiência de terror surpreendentemente profunda e eficaz, apesar de usar apenas um botão para sua jogabilidade.
A atmosfera é um dos pontos fortes de Faith. Apresentado com gráficos pixelados simples, remetendo a jogos como The Oregon Trail e Pitfall, o jogo utiliza uma tela preta para aumentar a sensação de perigo. Não há luz, não há conforto e não há fuga da escuridão que constantemente se aproxima de John e Garcia. A música, que inclui obras clássicas como “Sonata ao Luar” de Beethoven e “Eventide” de William Henry Monk, é distorcida através de sintetizadores 8-bit. Muitas vezes, há a ausência de música, substituída por gritos modulados.
Os momentos de exploração são interrompidos por cutscenes rotoscópicas em estilo Microsoft Paint. Olhos saltam das órbitas, membros são arrancados de bocas e demônios correm na escuridão. Faith usa seu estilo retrô de forma autêntica, aplicando a tecnologia da época para criar medo. O pavor é obtido ao forçar os jogadores a explorar um mundo assombrado sozinhos e sem armas. A sensação de ameaça surge em cada sala vazia, canto escuro de uma floresta e corredor com sangue e vísceras.
Embora Faith tenha começado como um projeto indie, a editora New Blood Interactive o impulsionou a novas alturas, incluindo um lançamento físico para Nintendo Switch. O gênero de terror tem tido grandes sucessos e algumas decepções nos últimos anos, e Faith: The Unholy Trinity oferece uma experiência para aqueles que buscam algo além de jogos com sustos fáceis e monstros genéricos. E lembre-se: Gary ama você.
Além disso, o terror também se destaca no cinema, e 2024 trouxe produções aclamadas, como The Substance, de Coralie Fargeat. O filme, considerado uma obra-prima do body horror, chamou a atenção por sua mensagem inteligente. No entanto, The Substance não é a primeira incursão de Fargeat no terror intelectual. Em 2017, ela dirigiu Revenge, um filme que explora os medos mais profundos do público, perturbando em níveis viscerais e desafiando normas sociais.
Revenge, apesar de ser classificado como um thriller de ação, é tão impactante e inteligente quanto The Substance. A trama segue Jen (Matilda Lutz) e Richard (Kevin Janssens), em uma viagem para uma casa isolada no deserto. A relação entre eles é complexa; Jen busca ajuda profissional de Richard, mas também está envolvida romanticamente com ele, que é casado. A situação se complica quando os amigos de Richard, Dimitri (Guillaume Bouchède) e Stan (Vincent Colombe), chegam e Dimitri agride sexualmente Jen.
Richard tenta abafar o caso, levando a uma discussão em que ele empurra Jen de um penhasco. Dada como morta, ela sobrevive e busca vingança. O que se segue é uma onda de violência com facas, armas e punhos. As mortes podem não ter a mesma satisfação de Jogos Mortais, mas são mostradas de forma igualmente sangrenta e justa.
Revenge pode ser visto como um filme gore, mas é uma crítica à vitimização e agressão. A história da vingança e do abuso é explorada, mostrando como a agressão sexual leva à violência. Jen se transforma em uma sobrevivente idealizada, iniciando uma guerra contra seus agressores. Revenge demonstra que o horror também pode ser usado para questionar temas sociais importantes.
Assim como The Substance, Revenge repagina o gênero, criando um espelho para o público refletir sobre a sociedade. O filme força o público a avaliar os padrões de beleza e a repensar seus próprios valores. Revenge destaca o poder da narrativa e do empoderamento feminino.
O filme brinca com as expectativas, mostrando o primeiro ato com a perspectiva masculina, focando nos aspectos “desejáveis” do corpo de Jen. Após a reviravolta, essas imagens contrastam com a brutalidade de Jen. Ela se transforma em uma guerreira, com a tatuagem da fênix e a autocauterização simbolizando seu renascimento. Revenge representa a força feminina e faz parte de um movimento crescente no cinema de terror, onde as mulheres estão redefinindo o gênero e dando voz a questões antes negligenciadas.
Em suma, Faith: The Unholy Trinity e Revenge são exemplos de como o terror pode ser usado de forma eficaz, com poucos recursos ou através de críticas sociais profundas. Ambos os títulos oferecem experiências que ficam na mente do espectador, desafiando suas expectativas e preconceitos.